伝 DEN
TRADIÇÃO
Conforme alguns dicionários, a palavra Tradição vem do latim: traditio, tradere, que significa: entregar; em grego, na definição religiosa do termo, a expressão é paradosis (παραδοσις) é a transmissão de práticas ou de valores espirituais de geração em geração, o conjunto das crenças de um povo, algo que é seguido conservadoramente e com respeito através das gerações.
A partir dessa acepção, notamos sua importância, com a sua conservação tornamos seus personagens imortais e uma conexão de conhecimento entre as gerações.
Uma tradição pode ser cultural, religiosa, familiar e outras formas que devem ser transmitidas (entregues) as gerações seguintes. Mas, uma tradição é imutável?
Como a própria definição indica, uma tradição deve ser seguida rigidamente e com respeito. Porém, podemos dizer que é quase impossível uma tradição, sendo ela qual for, ser transmitida por séculos de forma inabalável.
Nas Artes Marciais, podemos classificar de uma corrente tradicional 古流 Koryû as que se originaram antes da Restauração de 明治 Meiji (o período de 1866 a 1869) e os sistemas de artes marciais japonesas que sucedem a Restauração de Meiji são conhecidos como 現代武道 Gendai Budô ou simplesmente 新流 Shinryû (nova escola).
Nas Artes Marcais (武芸 Bugei), principalmente as clássicas, englobam traços culturais, religiosos e mesmo familiar em sua formação. Entretanto, é impossível para uma escola (流派 Ryûha) conseguir sustentar de forma inalterável todos seus ensinamentos durante várias gerações.
Para entendermos melhor como funciona a transmissão desses conhecimentos, precisamos conhecer alguns termos:
Um 宗家 Sôke (originador ou sucessor de uma família/clã/escola) pode transmitir seu conhecimento aos seguidores de forma verbal (口伝 Kuden), espiritual (心伝 Shinden), física (体伝 Taiden) e escrita (伝承 Denshô e 巻物 Makimono).
Na transmissão Kuden, o mestre imprimi seu conhecimento ao aluno de forma verbal, no Taiden de forma física, mostrando as técnicas da escola e complementando os detalhes verbalmente. Muitos dos conhecimentos marciais continuam e continuarão sendo passados dessa maneira. Quando esse ensinamento transcende a forma física é classificado como Shinden, na qual a ligação do aluno e mestre se tornou muito íntima e espiritual.
O Denshô é o que podemos chamar de livro técnico da tradição marcial. Nele é manuscrito a maioria das técnicas (Waza), fundamentos (Kihon) e formas pré-estabelecidas (Kata) inclusas na escola. Existe também o Makimono ou pergaminho na qual lista os nomes das técnicas, formas pré-estabelecidas (Mokuroku) e nome dos sucessores. Em muitos Makimono são ainda encontradas as lendas, histórias, posturas (Kamae) e segredos (Okuden) desenhados manualmente pelo Sôke. Com o passar das gerações, esses documentos podem se deteriorar, e com isso devem ser refeitos pelo sucessor. Outras vezes a reformulação, mudanças e inclusão de novas técnicas fazem também a necessidade de uma nova edição de um pergaminho.
Muitas tradições foram transmitidas sem os documentos manuscritos, somente de forma verbal, isso poderia acontecer para conservar o conhecimento da arte restrita a poucos membros e dificultando que os conhecimentos caíssem em mãos erradas. Porém, mesmo na transmissão documentada, se um desses documentos fosse roubado ou parasse nas mãos de um inimigo, pouco valeria, pois eles eram feitos com difícil interpretação e até mesmo codificada, de modo que somente nas mãos de um praticante avançado teria algum significado e valor.
Também era prática menos comum no Japão, a transmissão dos documentos para um segundo sucessor. O primeiro a receber é classificado de 表宗家 Omote Sôke (Sucessor visível ou aparente), porém, por motivo de segurança e perpetuação da tradição, uma segunda pessoa recebia uma cópia dos documentos, sendo um 裏宗家 Ura Sôke (Sucessor não visível ou escondido). Se algo acontecesse ao Omote Sôke, a arte não se extinguiria como aconteceu com muitas tradições Marciais.
Existe também a transmissão dentro do berço familiar ou 家伝 Kaden, onde, muitos Sôke somente transmitiam seus conhecimentos para um único filho, chamado 一子相伝 Isshin Sôden, ou para algum membro da família ou do mesmo com laço sanguíneo.
Entendendo um pouco do procedimento de transmissão nas tradições Marciais, conclui-se que muito pode se perder ou modificar conforme passam as gerações. Por esse motivo, torna-se imprescindível, a transmissão do conteúdo de uma escola de forma rígida e o mais fiel possível aos documentos passado aos sucessores e, somente dessa forma uma tradição poderá seguir para as próximas gerações. Isso cabe ao sucessor, que interpreta esses documentos e juntamente com a experiência obtida de seu mestre, estrutura a didática e mantém o mais leal da sua essência original.
Para melhor esclarecer esse processo pegamos como exemplo, o termo japonês Shuhari. Todo praticante de Artes Marciais deve passar pelo caminho de forma gradativa e seguir a ordem seguinte:
守 Shu (preservar), 破 Ha (quebrar) e 離 Ri (descartar).
Pular ou ignorar essa seqüência, certamente estará ignorando e destruindo o fluxo da tradição.
Muito saliento aos meus alunos sobre essa importância, a pratica do Henka (破 Ha) é muito importante para desenvolver a liberdade e sensibilidade técnica, porém somente deve-se dar ênfase a esse estágio, quando seu fundamento (守 Shu - Kata/Kihon) está estruturado. Manter uma padronização técnica é importante, pois só assim poderão quebrar essa forma sem a preocupação de desviar o caminho da tradição e naturalmente percorrer na direção do último estágio (離 Ri).
É comum vermos praticantes que querem copiar seu mestre e esquecem que ele já alcançou o nível elevado de seu caminho, e esse aluno ainda se encontra no inicio do mesmo. É nesse ponto que mora um grande inimigo da tradição.